Neste artigo, trato dos períodos de desenvolvimento da língua hebraica (Hebraico Bíblico, Mishnaico, Medieval e Moderno), fazendo uso da perspectiva histórico-cultural.

Hebraico Bíblico

Este período é tratado de forma geral como o período clássico do idioma [1]. Estima-se que o texto bíblico tenha sido escrito num intervalo de cerca de mil anos, assim supõe-se que vocábulos dos textos mais antigos (datados do período arcaico, séc. XIII a X a.C[2]) talvez não fossem compreendidos da mesma forma quando os últimos textos do cânon foram escritos (período pós-exílico[3]).[4]Isso porque, como qualquer outra língua viva, o hebraico foi sofrendo alterações e evoluiu, fato que pode ser comprovado através dos escritos contidos na Bíblia.

Supõe-se que o idioma deste período atingiu seu auge durante o período da monarquia unida (dos reis Saul, David e Salomão), já que a maior parte dos escritos bíblicos são datados deste tempo. Percebe-se também que estes textos evitam ao máximo utilizar o que chamamos hoje de estrangeirismos,[5] o que nos mostra uma preocupação com a preservação ou mesmo com a consolidação da língua enquanto uma das representações do povo israelita.

Logo depois desta etapa, temos o chamado hebraico bíblico pós-exílico, que passa a sofrer muitas interferências do aramaico, língua próxima do hebraico que havia se tornado a língua franca do período. Estas influências, devido à expansão do aramaico enquanto língua internacional e também devido ao exílio de muitos judeus, chega a ser muito forte, por vezes até ameaçadora[6] Contudo, mesmo com este influxo causado pela língua aramaica, os escritos bíblicos datados deste período demonstram claro interesse de imitar o hebraico do período áureo, tanto sintaticamente quanto literariamente, o que no entanto só é conseguido parcialmente, já que por questões de entendimento os escritores procuravam adicionar novas palavras ou construções, o que seria também uma influência do hebraico falado da época[7].

Apesar do hebraico bíblico ter sido modelo para todos os períodos posteriores, como veremos logo adiante, é importante ressaltar que a Bíblia Hebraica contém somente cerca de 8 000 vocábulos diferentes (sendo que de número, 2 000 são hapax, termos que aparecem uma única vez). Este léxico era relativamente restrito se comparado à outras realidades e períodos, mas sendo o reflexo de um povo, quando relacionado à sua geografia, costumes e religião, nos mostra uma diversidade e variedade de palavras quando se tratava de assuntos próprios à sua cultura.[8]

Hebraico Mishnaico

O hebraico mishnaico, mesmo tendo sofrido fortes influências do aramaico e do grego, é sem dúvida o continuador do hebraico bíblico. Neste período, houve um grande crescimento no vocabulário da língua (conta-se cerca de 15 mil palavras nos escritos deste período), isso por conta do vasto campo que os escritos precisam englobar[9], já que é neste ínterim que se desenvolve a literatura escrita com a finalidade de interpretação da Bíblia[10].

Neste momento surgem, de forma mais evidente do que antes, dúvidas no tocante ao significado de muitas palavras bíblicas, principalmente às denominadas como hapax.[11] Assim, muitas palavras que possuíam um significado geral e secular no contexto bíblico, passam a designar no período mishnaico um aspecto específico e religioso, além de outras adaptações e alterações[12].

As primeiras traduções em aramaico da Bíblia (como por exemplo o Targum Unkelos), foram da mesma forma importantes na influência léxica e gramatical que ocorreu no hebraico da mishná. Apesar disso, fica difícil estabelecer onde aconteceram influências e onde as semelhanças são devidas ao contato e história em comum do aramaico e o hebraico[13]. O grego, que a partir da expansão helênica e em seguida da dominação do Império Romano passou a ser a língua internacional, de certa maneira também contribui com alterações e acréscimos ao hebraico, porém em menor proporção, já que não tendo a proximidade que o aramaico possui do hebraico, apenas podia afetar o vocabulário do idioma judeu.

Um aspecto importante a ser notado neste período é que, apesar das alterações e evoluções semânticas ocorridas neste contexto, o hebraico corrente continua de modo geral fiel à morfologia e à sintaxe do hebraico bíblico. Assim, podemos perceber que neste período, o hebraico mishnaico, também denominado como Talmúdico, apresentou um grande desenvolvimento e expansão do hebraico enquanto língua viva. No final deste período, o hebraico, já de certa forma abalado desde o exílio, vai se confinar quase que exclusivamente à literatura, aos estudos bíblicos e à liturgia das sinagogas.[14]

Hebraico Medieval

No período Bíblico as estruturas gramaticais não eram rígidas, já que encontra-se no texto algumas variações gramaticais, como a forma de algumas palavras, mais de uma forma de plural, dois tipos de sufixos pronominais, etc. No período Talmúdico aparecem novas possibilidades gramaticais e lexicais. É somente a partir do período medieval que inicia-se um empreendimento no sentido de fixar mais rigorosamente e definir a estrutura gramatical do idioma.[15]

Neste período, apesar de não ser mais um idioma usado no cotidiano (falar o idioma sagrado era habitual somente nas sinagogas, ou quando não queriam que gentios os entendessem ou mesmo para se comunicar com judeus de outras nações), o hebraico continuou a possuir uma literatura muito frutífera. O hebraico bíblico era preferencialmente usado na poesia, enquanto o hebraico mishnaico era mais empregado na prosa. Apesar dos modelos Bíblico e Talmúdico serem amplamente copiados na composição das obras escritas, não se pode negar a importante influência dos modelos árabes.[16]

Também é no período medieval que se desenvolveram os sistemas de vocalização do texto bíblico, os sinais diacríticos ou massoréticos. No início desenvolveram-se três sistemas, dos quais se destacou e se consolidou o sistema de Tiberíades, que a partir de determinado momento não só ultrapassou a “popularidade” dos outros dois, mas também os suplantou, sendo este o sistema que permanece nas edições impressas da Bíblia Hebraica até hoje.[17]

Os massoretas criam que o sistema de vocalização criado por eles era a representação fiel da pronúncia do hebraico bíblico em seu estágio clássico, porém alguns estudiosos argumentam que a vocalização massorética não reflete nenhum estágio do hebraico bíblico, mas somente a pronúncia ouvida nas sinagogas durante as leituras do Tanakh. Já outros afirmam que mesmo não refletindo de maneira exata o hebraico falado no período bíblico, as opções dos massoretas são bem próximas às vocalizações de textos bem antigos e que assim não seriam simplesmente reconstruções artificiais, mas formas de pronúncia tardias ou mesmo dialetais.[18]

Hebraico Moderno

Durante o pré-modernismo os idiomas fizeram parte da fundação dos Estados Nacionais, já que o nacionalismo está intimamente ligado à língua na qual se expressa um determinado povo. Durante este processo, os povos que conviviam com os judeus procuraram sistematicamente isolá-los fisicamente e intelectualmente, fato este que influenciou diretamente na auto-preservação judaica.[19]

No período em que se desenvolveu o Iluminismo europeu, o hebraico bíblico preencheu as necessidades dos intelectuais judeus, que puderam desenvolver uma produção literária peculiar ao modo de pensar judeu, criando assim a versão judaica do Iluminismo, a Haskalá. Isso possibilitou a criação dos alicerces do sionismo e de certa maneira “preparou o terreno” para o desenvolvimento do hebraico enquanto língua do dia a dia. Esta literatura utilizava-se do vocabulário bíblico, e quando determinadas idéias não encontravam forma na linguagem bíblica, utilizavam-se das expressões e das formas encontradas na Mishná, e assim esta forma foi sendo cada vez mais adotada literariamente. Assim, o nacionalismo judaico começa a se fortalecer, estando intimamente ligado à idéia da língua hebraica e de sua utilização como forma de coesão.[20]

O renascimento da língua hebraica começa então a ocorrer baseado em uma ideologia inspirada no nacionalismo europeu, e na ocasião da formação do Estado de Israel, o idioma não só fornecia aos imigrantes de origens diversas uma forma de comunicação, mas foi oficializado seu uso através das escolas do novo estado que também passaram a ensinar o idioma.[21]

Podemos perceber que a maior parte do hebraico moderno é formado pelo hebraico bíblico, isso porque durante toda a história, é fundamental o papel da leitura do Tanakh durante as cerimônias religiosas que envolviam a vida do povo judeu. De qualquer forma, por uma série de fatores, no renascimento da língua, parte do vocabulário da Bíblia Hebraica teve seu significado alterado. Um dos motivos é que até hoje muitos dos vocábulos bíblicos têm seu significado debatido até hoje, o que abriu um leque de possibilidades dentro do idioma moderno. Além disso, as necessidades do pensamento moderno também exigiram alterações e adaptações de significado nas palavras.[22]

A participação crescente dos judeus na cultura ocidental fez com que algumas palavras do léxico hebraico mudassem seu significado e passassem a ser correspondentes das palavras contidas nas línguas européias, o que anteriormente não ocorria, já que a língua hebraica, devido à distância cultural originalmente não havia desenvolvido palavras para determinados conceitos, assim como também possuía termos para idéias desconhecidas das culturas européias. Todo este desenvolvimento do hebraico chegou ao seu ápice através da linguagem jornalística, da técnica e da ciência, ou seja, todo o processo de secularização da língua contribuiu de forma muito relevante com a ampliação de vocabulários e significados.[23]

Apesar da linguagem bíblica ser a mais estudada (pois estuda-se a Bíblia desde cedo nas escolas israelenses) e também a que predomina na memória coletiva dos falantes do hebraico, a linguagem e forma mishnaicas também possui um amplo espaço dentro do idioma corrente nos dias atuais. Muitas vezes palavras sinônimas têm origens diferentes (uma bíblica e outra mishnaica) e são usadas de igual forma, sem distinção. Outros vocábulos, apesar de originalmente possuírem o significado exatamente igual, no hebraico moderno começam a deixar de ser homônimos para apresentarem uma variação de significado, o que confere á língua uma nova complexidade e beneficia a expressão oral e literária.

Assim, podemos perceber, que todo o processo que resultou no hebraico moderno não foi o resultado de uma evolução similar aos processos pelos quais passaram línguas cujos estratos históricos se desenvolveram continuamente. Este processo, durante muitos séculos se deu somente enquanto língua escrita, e mesmo assim de forma diferente, já que não ocorriam eliminações ou substituições lingüísticas, mas todos os estratos históricos (bíblico, talmúdico e medieval) foram colocados lado a lado, sem a eliminação do que era considerado antigo quando apareciam inovações, e é justamente esta sucessão peculiar que caracteriza o hebraico moderno.[24]

Por Irrael B. C. Melo Jr.

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Notas

[1] HADAS-LEBEL, Meirele. O hebraico: 3000 anos de história. Paris: Éditions Albin Michel, 1992 (tradução de Eliana Branco Matanga para o Centro de Estudos Judaicos da FFLCH – USP, em abril de 1998), p. 13.
[2] FRANCISCO, Edson de Faria. Características da língua hebraica: Hebraico Arcaico, Hebraico Pré e Pós-Exílico, Hebraico de Qumran e Hebraico Massorético. São Paulo: Biblioteca do Centro de Estudos Judaicos, ?, p. 2.
[3] Ibid., p. 2.
[4] BEREZIN, Rifka. O Hebraico Bíblico no Hebraico moderno – Contribuição para o estudo das transformações semânticas no hebraico bíblico. São Paulo: Departamento de Lingüística e línguas Orientais da FFLCH – USP, 1985. Tese (doutorado), p. 26.
[5] FRANCISCO, p. 6.
[6] HADAS-LEBEL, p.19
[7] Ibid., p. 20-21.
[8] RIFKA, p. 12.
[9] HADAS-LEBEL, p.34.
[10] RIFKA, p.74.
[11] Ibid., pp. 57-60.
[12] Ibid., pp.92-93.
[13] Ibid, pp. 81-86.
[14] HADAS-LEBEL, p.36.
[15] Ibid., p. 17.
[16] RABIN, Chaim. Pequena História da Língua Hebraica. São Paulo: Summus Editorial, s.d., pp. 63-80.
[17] FRANCISCO, p. 13.
[18] Ibid., p. 14.
[19] RABIN, pp. 81-86.
[20] Ibid., p. 87-93
[21] Ibid., 101.
[22] BEREZIN, pp. 2-5.
[23] Ibid., pp. 7-9, 103.
[24] Ibid., pp. 100-102


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This entry was posted on terça-feira, 18 de novembro de 2008 at 11:31 and is filed under , . You can follow any responses to this entry through the .

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