Respostas na Bíblia Hebraica I  

Postado por Irrael B. C. Melo Jr em , ,

Caros amigos leitores deste blog, gostaria de agradecer as visitas e comentários que tenho recebido nestas primeiras semanas do Blog Estudos na Bíblia Hebraica.

Tenho percebido que algumas pessoas têm enviado perguntas e solicitações através dos comentários, por isso decidi começar a responder em minhas postagens com artigos bem objetivos às principais questões levantadas.

Por isso peço que continuem enviando perguntas através dos comentários e eu farei o possível para atendê-los de acordo com meu tempo e dentro do meu campo de conhecimentos.

Sendo assim, selecionei a primeira questão para inaugurar esta seção de perguntas e respostas:

Prezado Senhor Irrael,
Primeiramente quero parabenizá-lo por este blog, pois o mesmo é uma fonte riquíssima para estudiosos agregarem conhecimentos Bíblicos.
Irrael, eu sei que você dever ser uma pessoa muito ocupada, mas caso você possa me ajudar, eu desejo fazer a você a seguinte pergunta: No Hebraico Bíblico o trecho do versículo de Ageu 2.7 que diz “virá o Desejado das nações” refere-se a uma profecia messiânica a respeito da vinda de Cristo ou não?
Minha dúvida a este respeito veio após eu ler esse versículo em diferentes versões, pois algumas versões fazem entender "O Desejado" como sendo o Messias, já outras como se fossem riquezas das nações. Assim, como não encontrei nenhuma literatura confiável que possa esclarecer esta minha duvida, recorro ao seu notável saber da língua hebraica para que, caso possa, me informar a respeito.
Desde já, meu muito Obrigado.
Gleison.


Gleison, primeiramente muito obrigado pelo incentivo à este blog e ao meu trabalho.

Neste caso de Ageu 2:7, a palavra traduzida em algumas versões como ”riquezas” e outras como “Desejado”, em hebraico é חֶמְדַּת, transliterada, hemdat, que seria o adjetivo singular de algo precioso ou desejável.

Certo, até aqui as duas opções seriam possíveis, então vamos analisar outra palavra ligada à esta na frase, וּבָאוּ, transliterada, uvau, que significa “e virão”, portanto, a conjunção + verbo no plural.

Desta forma temos aparentemente um certo problema, pois o verbo está no plural, mas o sujeito no singular, veja:

וּבָאוּ חֶמְדַּת, (uvau hemdat) que traduzindo literalmente, ficaria “e virão a preciosidade” ou “e virão o desejo”.

Os estudiosos argumentam, para responder à esta questão, que hemdat é singular, mas assume um significado de coletivo por estar com seu verbo no plural, assim pode ser traduzido como “e virão os desejos” ou “e virão as preciosidades”. Assim, a maioria das traduções mais aceitas traduzem preciosidades ou riquezas devido ao contexto do verso seguinte (2:8), onde aparecem referências à ouro e prata.

Mas e as versões que traduzem este trecho como “e virá o Desejado”, sugerindo uma profecia messiânica?

Neste caso é necessário primeiro entender que toda tradução, ao escolher palavras para traduzir um texto do original está, invariavelmente, fazendo uma exegese, e esta exegese estará, de forma proposital ou não, imbuída da ideologia e visão de mundo do tradutor. São Jerônimo, que traduziu o chamado Antigo Testamento (Bíblia Hebraica ou Tanakh) direto do hebraico para o latim, na chamada Vulgata (que também inclui o Novo Testamento cristão), ao se deparar com estas e outras questões levantadas pelo livro de Ageu, optou por traduzir o trecho da seguinte maneira: “et veniet Desideratus”, ou seja, “e virá o Desejado”, fazendo uma clara alusão ao Messias.

Considerando que a Vulgata foi a única tradução usada pela igreja católica na liturgia durante muitos séculos, e mesmo depois foi muito usada como ajuda ou fonte nas traduções da Bíblia para várias línguas, esta interpretação da profecia se propagou e foi defendida por personagens importantes, como por exemplo Martinho Lutero, e encontra adeptos até hoje. Porém é importante frisar que nos meios acadêmicos esta visão encontra-se quase abandonada.

Por Irrael B. C. Melo Jr.

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Bibliografia

BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, 2003.
SMITH, R. L. Word Biblical Commentary : Vol. 32: Micah-Malachi (electronic ed.). Logos Library System; Word Biblical Commentary. Dallas: Word, Incorporated,1998.


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O relato de Iosseph (José) de acordo com duas grandes exegeses  

Postado por Irrael B. C. Melo Jr em ,

O presente artigo tem como objetivo realizar uma breve análise do relato bíblico de Iosseph (José) - Gênesis capítulo 37 e 39. No relato de Iosseph, pretendo realizar primeiramente uma descrição geral do relato e a seguir selecionar alguns pontos específicos para comparação exegética. Esta análise se dará a partir do grande exegeta tradicional da Idade Média, Rashi e de um tradutor da Bíblia do século XX, André Chouraqui. A seguir apresento uma breve biografia desses dois personagens importantes quando se trata de exegese bíblica.

Rashi

O Rabi Shlomo Bem Yitzhaki, mais conhecido como Rashi, foi o mais famoso comentarista da Torá. Ele escreveu comentários, explicando e esclarecendo quase todos os versos dos 24 Livros da Torá. A maioria do Talmud também foi elucidada por Rashi. Foram seus comentários que permitiram que esta enciclopédia de lei e sabedoria judaica se tornasse compreensível. Nascido na França, Rashi viveu durante os anos 1040-1105. Rashi usava um tipo de letra própria, uma forma semicursiva da escrita hebraica, também denominada Mashket sendo conhecida como “caracteres rabínicos”. Até hoje os comentários são impressos em letra de Rashi ao lado dos caracteres quadráticos.

Chouraqui

André Chouraqui é um judeu nascido na Argélia em 1917, mas domiciliado na França e em Israel. Dedicou-se à tradução da Bíblia (Antigo e Novo Testamento) para o francês a partir do texto original (hebraico para o Antigo Testamento, e grego para o Novo Testamento), procurando ser fiel, o mais possível, ao sentido nativo das palavras. Disto resulta um texto vernáculo rude, mas muito vivo, justamente por ser muito próximo dos originais.

O relato de Iosseph

Resumo: Bereshit (Gênesis) capítulo 37

O filho favorito de Yaacov (Jacó) era Iosseph, seu ben z’kunin (filho da velhice) e lhe presenteou com uma túnica de muitas cores, talvez como sinal de senhorio, o que despertou o ciúme dos irmãos de Iosseph, ao ponto que chegaram a odiá-lo e não poder mais sequer falar-lhe em um tom amigável.

Iosseph teve dois sonhos com a mesma mensagem evidente e ódio de seus irmãos se intensificou quando conheceram o conteúdo desses sonhos. No primeiro, os feixes de espigas de seus irmãos inclinavam-se diante do seu, que estava no meio deles. No segundo, o sol, a lua e onze estrelas (representando toda a família de Iosseph) se inclinavam diante dele. A dedução era que todos os membros da família de Iosseph se subordinariam a ele. Iaakov aparentou reprová-lo pelo fato disso ter despertado a inimizade de seus irmãos, ainda que ele pessoalmente parecia crer que os sonhos tinham algo de sobrenatural.

Quando os irmãos de Iosseph estavam cuidando dos rebanhos de seu pai em Shechem (Siquém), Iaakov o enviou para observar como iam as coisas. Ao vê-lo aproximar-se, os irmãos consideraram que era sua oportunidade de conspirar a sua morte, jogar seu corpo em um poço e em seguida encobrir seu ato dizendo que havia sido devorado por uma besta selvagem.

Reuben (Rúben) sabia que isso era um crime. Queria salvar a Iosseph, porém compreendeu que os outros irmãos não entenderiam suas palavras. A pesar disso, tentou convencê-los para que não matassem a Iosseph, e por isso o jogaram vivo dentro de um poço próximo. Na verdade ele fez isso propondo-se a regressar secretamente mais tarde para resgata-lo.

Nesse momento perceberam que se aproximava uma caravana de ismaelitas que transportavam especiarias ao Egito, e a Yehudá (Judá) ocorreu a idéia de vender Iosseph como escravo ao invés de causar diretamente sua morte. Os demais irmãos aceitaram este novo plano e ao que parece, venderam-no aos viajantes ismaelitas por vinte peças de prata. Reuben, que provavelmente estava longe quando isto ocorreu, regressou ao lugar e para seu grande pesar, Iosseph não estava mais lá. Os irmãos mancharam a roupa de Iosseph com sangue de cabra (ou bode) e a levaram a Iaakov, que se convenceu que Iosseph havia sido devorado por uma besta selvagem e chorou sua perda por muito tempo.

Resumo: Bereshit capítulo 39

Deus protegia Iosseph e este tinha êxito em tudo o que empreendia. Ao dar-se conta disso, Potifar, um comandante do Egito que havia comprado Iosseph, o designou como mordomo de sua casa. A esposa de potifar tratou de seduzir a Iosseph, porém ele ignorava seus assédios. Finalmente, ela sentiu-se ofendida e vingou-se maliciosamente, acusando-o de assediá-la, conseguindo assim que Iosseph fosse jogado na prisão.

Até mesmo no cárcere, Deus estava com Iosseph, e este encontrou graça aos olhos do carcereiro, que o pôs como encarregado de todos os prisioneiros, e assim tudo o que ocorria na prisão era controlado por Iosseph. Enquanto permaneceu ali, conheceu dois funcionários reais, o copeiro e o padeiro, que haviam ofendido ao faraó e estavam em prisão aguardando sua sentença. Uma noite, cada um dos deles tiveram um sonho, os quais contaram a Iosseph, que realizou a interpretação: o copeiro seria perdoado pelo faraó, mas o padeiro seria executado. Tudo ocorreu tal como Iosseph havia predito, então pediu ao copeiro que intercedesse perante o faraó em seu favor, entretanto este funcionário esqueceu o pedido assim que foi liberado da prisão.

Analisando algumas interpretações

A primeira questão que quero chamar a atenção encontra-se no versículo 14 do capítulo 37, onde Iaakov envia Iosseph ao encontro de seus irmãos. A passagem diz que Iosseph é enviado do vale de Hebron e vai para Shechem. De acordo com Rashi, fato este que também é confirmado por Chouraqui, Hebron não é localizado em um vale, mas em uma altitude razoável - Bamidbar (Números) 13:22. Assim, Rashi descobre a oportunidade de conferir a isto um sentido espiritual. “O vale de Hebron”, na verdade anunciaria o estado de degradação que Iosseph se encontraria após encontrar-se com seus irmãos, e ainda compara o fato de Iaakov ter enviado Iosseph com as palavras de Deus a Avraham (Abraão)- Bereshit 15:13.

No versículo seguinte (15), Iosseph está “errante” no campo quando encontra com um homem, que indica o local para onde seus irmãos partiram. O homem, segundo Rashi (fazendo referência ao livro de Daniel 10:21), é o anjo Gabriel, que interpela Iosseph para colocá-lo na rota de seu destino. Assim, como Chouraqui vai afirmar, o diálogo entre os dois, que aparentemente seria acidental, determina o futuro, já que Iosseph não mais retornaria para casa por não ter encontrado seus irmãos, e assim o relato propõe uma reflexão do querer divino com relação ao livre-arbítrio humano.

Mais adiante, no versículo 24, que afirma que os irmãos jogam Iosseph no poço vazio, sem água, Chouraqui considera isto como sendo um outro sinal providencial, já que se estivesse cheio de água, esse poderia ser o fim de Iosseph. Rashi parece confirmar a ação providencial, ao dizer que o texto afirma que o poço estava vazio e sem água, não por acaso, mas para mostrar que se estivesse apenas sem água, ali poderia haver outra coisa que colocasse a vida de Iosseph em risco, como serpentes e escorpiões.

A última questão que quero tratar sobre este relato, é a questão da venda de Iosseph (versículos 27 e 28). Conforme Chouraqui afirma, diversos exegetas rivalizam em engenhosidade para tentar conciliar as aparentes contradições presentes neste trecho, porque os compradores são, primeiro, Ishmeelim (Ismaelitas) no v.27, depois são Midianim (Midianitas) no v.28 e a seguir são novamente Ishmeelim. Rashi tenta conciliar estes acontecimentos da seguinte maneira, na verdade Iosseph fora vendido por algumas vezes, sendo que os irmãos teriam o tirado do poço e o vendido aos Ishmeelim, que por sua vez os venderam aos Midianim, e estes introduziram-no no Egito. Para Chouraqui, esta tese não seria evidente e a questão seria insolúvel, já que no versículo 1 do capítulo 39 Potifar compra Iosseph dos Ishmeelim e não dos Midianim. A exegese tradicional explica isso referindo-se ao fato de Iosseph ter sido vendido e até mesmo roubado várias vezes, o que seria a representação dos exílios de Israel de uma a outra nação (I Cr 16:20). Inclusive esta aparente incongruência oferece ocasião para que entrem os partidários da crítica das fontes dizendo que as contradições são fruto da combinação de dois relatos, um de fonte javista e outro eloísta, fato este que é completamente ignorado e repelido pela exegese judaica tradicional, que considera a totalidade da bíblia como algo uno e coeso.

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Bibliografia

CHOURAQUI, André. No Princípio (Gênesis). Rio de Janeiro, Imago, 1995.
SILBERMANN, Rabbi A. M. Silbermann (edited by). Chumash with Rashi’s Commentary, vol. I. Jerusalem, Silbermann Family, 5745.


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Matrimônios endogâmicos e exogâmicos

Matrimônio endogâmico é uma espécie de tradição na narrativa do texto bíblico, que impõe, ou ao menos recomenda, o casamento no interior do clã, ou seja, o cônjuge deve ser encontrado no seio do parentesco, ou mesmo da linhagem.

Nas narrativas patriarcais temos a princípio o próprio Abraão, que se revela casado com sua meio-irmã patrilateral, Sarah (Gn 20:12). Apesar disso, o que o texto vai apresentar nos relatos seguintes, sugere que o casamento endogâmico ideal é realizado entre primos, como é o caso de Isaac e Rebeca (neta do irmão de Abraão, conforme em Gn 24:15) e mais ainda o entre Jacob e Leia e Rachel (as quais são primas cruzadas matrilaterais de Jacob, conforme Gn 28:2).

Sociologicamente falando, esses casamentos dentro do clã conservam a linhagem, garantem a preservação da identidade e impedem a dispersão dos bens familiares, especialmente no casamento com a prima cruzada[1] matrilateral, já que se analisarmos em última instância, permite que o filho recupere mesmo que em parte, os bens saidos do patrimônio por ocasião do casamento do pai. Teologicamente, o casamento endogâmico no período patriarcal tem por finalidade garantir a pureza do culto a D´ e o não afastamento para servir outros deuses, já que há uma aversão por parte dos Israelitas aos cultos e culturas das outras nações, em especial as cananéias, consideradas não só profanas mas sobretudo como sendo imbuídas de perversões sexuais.

O casamendo exogâmico, por oposição ao endogâmico, é a contração de matrimônio fora do grupo étnico, o que no contexto das narrativas patriarcais é não só indesejável mas também proibido, o que se percebe no episódio em que Abraão envia seu servo à sua parentela para buscar uma esposa para Isaac com especial restrição às “filhas dos cananeus"[2] (Gn 24:3), e no episódio que narra o matrimônio exogâmico de Esaú com as mulheres hetéias (Gn 26:34) que causa desgosto a Isaac e a Rebeca (Gn 26:35, 27:46).

A importância do casamento endogâmico é admitida pelo mesmo transgressor da regra, como no casa de Esaú, que reconhecendo que seu status havia caído pela violação ao costume, tenta reavê-lo casando-se com a filha de Ismael, sua prima paralela[3] patrilateral, o que não fez sentido, já que ele se uniu em matrimônio com a parte deserdada descendência de Abraão.

Levirato

Quanto ao levirato, era uma instituição que existia entre os israelitas e outros povos do Oriente Médio antigo (como os assírios e os hititas), e consistia na obrigação imposta às mulheres de se casarem com o irmão mais novo do falecido marido. Assim, o cunhado tinha a responsabilidade de, através deste casamento com a viúva de seu irmão, dar um herdeiro do sexo masculino ao falecido, de modo que o nome deste não desaparecesse[5] em Israel e mantivesse a propriedade em seu nome. Desta forma, o primogênito, levava o nome do pai “legítimo” (ou seja, o primeiro marido falecido), sendo o tio (pai biológico) o representante do pai. A importância desta lei, que já é consuetudinária antes de Dt 25:5-10, reside não só em manter o nome da família, já que proibia o casamento da viúva fora da família do marido, mas talvez sobretudo na manutenção das propriedades dentro do clã.

Assumir a responsabilidade de cumprir esse dever para com o falecido irmão é a essência do significado do levirato, como vemos em Gn 38 (episódio de Tamar e Onã) e também na história de Rute (onde na falta de um cunhado, um parente mais próximo assume esta responsabilidade). No caso do cunhado se recusar à este dever de suscitar um herdeiro para o irmão morto, então, perante os anciãos, a cunhada viúva publicamente teria que desonrar o irmão do marido, tirando-lhe a sandália e cuspindo-lhe no rosto. Então a partir daquele momento, ele seria conhecido em todo o Israel como “a casa do descalçado”[6].

Por Irrael B. C. Melo Jr.

Texto elaborado tendo como base as aulas da disciplina Cultura de Israel na Antigüidade, ministradas pela Profª Drª Suzana Chwarts, do Departamento de Letras Orientais da USP, no ano de 2005.

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Notas

[1] Casamento entre primos cruzados: É o casamento entre filhos de um irmão e uma irmã.
[2] מִ‍בְּנוֹת הַכְּנַעֲנִי
[3] Casamento entre primos paralelos: É o casamento entre filhos de dois irmãos ou duas irmãs.
[4] Do latim levir, “cunhado”, que é a tradução para יבם, “cumprir o dever de cunhado”, já a raiz ugarítica provavelmente signifique “gerar”, “criar”.
[5] נהב, tivesse edificada sua casa, Gn 38:8.
[6] בית חלוץ הנעל


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Neste artigo, trato dos períodos de desenvolvimento da língua hebraica (Hebraico Bíblico, Mishnaico, Medieval e Moderno), fazendo uso da perspectiva histórico-cultural.

Hebraico Bíblico

Este período é tratado de forma geral como o período clássico do idioma [1]. Estima-se que o texto bíblico tenha sido escrito num intervalo de cerca de mil anos, assim supõe-se que vocábulos dos textos mais antigos (datados do período arcaico, séc. XIII a X a.C[2]) talvez não fossem compreendidos da mesma forma quando os últimos textos do cânon foram escritos (período pós-exílico[3]).[4]Isso porque, como qualquer outra língua viva, o hebraico foi sofrendo alterações e evoluiu, fato que pode ser comprovado através dos escritos contidos na Bíblia.

Supõe-se que o idioma deste período atingiu seu auge durante o período da monarquia unida (dos reis Saul, David e Salomão), já que a maior parte dos escritos bíblicos são datados deste tempo. Percebe-se também que estes textos evitam ao máximo utilizar o que chamamos hoje de estrangeirismos,[5] o que nos mostra uma preocupação com a preservação ou mesmo com a consolidação da língua enquanto uma das representações do povo israelita.

Logo depois desta etapa, temos o chamado hebraico bíblico pós-exílico, que passa a sofrer muitas interferências do aramaico, língua próxima do hebraico que havia se tornado a língua franca do período. Estas influências, devido à expansão do aramaico enquanto língua internacional e também devido ao exílio de muitos judeus, chega a ser muito forte, por vezes até ameaçadora[6] Contudo, mesmo com este influxo causado pela língua aramaica, os escritos bíblicos datados deste período demonstram claro interesse de imitar o hebraico do período áureo, tanto sintaticamente quanto literariamente, o que no entanto só é conseguido parcialmente, já que por questões de entendimento os escritores procuravam adicionar novas palavras ou construções, o que seria também uma influência do hebraico falado da época[7].

Apesar do hebraico bíblico ter sido modelo para todos os períodos posteriores, como veremos logo adiante, é importante ressaltar que a Bíblia Hebraica contém somente cerca de 8 000 vocábulos diferentes (sendo que de número, 2 000 são hapax, termos que aparecem uma única vez). Este léxico era relativamente restrito se comparado à outras realidades e períodos, mas sendo o reflexo de um povo, quando relacionado à sua geografia, costumes e religião, nos mostra uma diversidade e variedade de palavras quando se tratava de assuntos próprios à sua cultura.[8]

Hebraico Mishnaico

O hebraico mishnaico, mesmo tendo sofrido fortes influências do aramaico e do grego, é sem dúvida o continuador do hebraico bíblico. Neste período, houve um grande crescimento no vocabulário da língua (conta-se cerca de 15 mil palavras nos escritos deste período), isso por conta do vasto campo que os escritos precisam englobar[9], já que é neste ínterim que se desenvolve a literatura escrita com a finalidade de interpretação da Bíblia[10].

Neste momento surgem, de forma mais evidente do que antes, dúvidas no tocante ao significado de muitas palavras bíblicas, principalmente às denominadas como hapax.[11] Assim, muitas palavras que possuíam um significado geral e secular no contexto bíblico, passam a designar no período mishnaico um aspecto específico e religioso, além de outras adaptações e alterações[12].

As primeiras traduções em aramaico da Bíblia (como por exemplo o Targum Unkelos), foram da mesma forma importantes na influência léxica e gramatical que ocorreu no hebraico da mishná. Apesar disso, fica difícil estabelecer onde aconteceram influências e onde as semelhanças são devidas ao contato e história em comum do aramaico e o hebraico[13]. O grego, que a partir da expansão helênica e em seguida da dominação do Império Romano passou a ser a língua internacional, de certa maneira também contribui com alterações e acréscimos ao hebraico, porém em menor proporção, já que não tendo a proximidade que o aramaico possui do hebraico, apenas podia afetar o vocabulário do idioma judeu.

Um aspecto importante a ser notado neste período é que, apesar das alterações e evoluções semânticas ocorridas neste contexto, o hebraico corrente continua de modo geral fiel à morfologia e à sintaxe do hebraico bíblico. Assim, podemos perceber que neste período, o hebraico mishnaico, também denominado como Talmúdico, apresentou um grande desenvolvimento e expansão do hebraico enquanto língua viva. No final deste período, o hebraico, já de certa forma abalado desde o exílio, vai se confinar quase que exclusivamente à literatura, aos estudos bíblicos e à liturgia das sinagogas.[14]

Hebraico Medieval

No período Bíblico as estruturas gramaticais não eram rígidas, já que encontra-se no texto algumas variações gramaticais, como a forma de algumas palavras, mais de uma forma de plural, dois tipos de sufixos pronominais, etc. No período Talmúdico aparecem novas possibilidades gramaticais e lexicais. É somente a partir do período medieval que inicia-se um empreendimento no sentido de fixar mais rigorosamente e definir a estrutura gramatical do idioma.[15]

Neste período, apesar de não ser mais um idioma usado no cotidiano (falar o idioma sagrado era habitual somente nas sinagogas, ou quando não queriam que gentios os entendessem ou mesmo para se comunicar com judeus de outras nações), o hebraico continuou a possuir uma literatura muito frutífera. O hebraico bíblico era preferencialmente usado na poesia, enquanto o hebraico mishnaico era mais empregado na prosa. Apesar dos modelos Bíblico e Talmúdico serem amplamente copiados na composição das obras escritas, não se pode negar a importante influência dos modelos árabes.[16]

Também é no período medieval que se desenvolveram os sistemas de vocalização do texto bíblico, os sinais diacríticos ou massoréticos. No início desenvolveram-se três sistemas, dos quais se destacou e se consolidou o sistema de Tiberíades, que a partir de determinado momento não só ultrapassou a “popularidade” dos outros dois, mas também os suplantou, sendo este o sistema que permanece nas edições impressas da Bíblia Hebraica até hoje.[17]

Os massoretas criam que o sistema de vocalização criado por eles era a representação fiel da pronúncia do hebraico bíblico em seu estágio clássico, porém alguns estudiosos argumentam que a vocalização massorética não reflete nenhum estágio do hebraico bíblico, mas somente a pronúncia ouvida nas sinagogas durante as leituras do Tanakh. Já outros afirmam que mesmo não refletindo de maneira exata o hebraico falado no período bíblico, as opções dos massoretas são bem próximas às vocalizações de textos bem antigos e que assim não seriam simplesmente reconstruções artificiais, mas formas de pronúncia tardias ou mesmo dialetais.[18]

Hebraico Moderno

Durante o pré-modernismo os idiomas fizeram parte da fundação dos Estados Nacionais, já que o nacionalismo está intimamente ligado à língua na qual se expressa um determinado povo. Durante este processo, os povos que conviviam com os judeus procuraram sistematicamente isolá-los fisicamente e intelectualmente, fato este que influenciou diretamente na auto-preservação judaica.[19]

No período em que se desenvolveu o Iluminismo europeu, o hebraico bíblico preencheu as necessidades dos intelectuais judeus, que puderam desenvolver uma produção literária peculiar ao modo de pensar judeu, criando assim a versão judaica do Iluminismo, a Haskalá. Isso possibilitou a criação dos alicerces do sionismo e de certa maneira “preparou o terreno” para o desenvolvimento do hebraico enquanto língua do dia a dia. Esta literatura utilizava-se do vocabulário bíblico, e quando determinadas idéias não encontravam forma na linguagem bíblica, utilizavam-se das expressões e das formas encontradas na Mishná, e assim esta forma foi sendo cada vez mais adotada literariamente. Assim, o nacionalismo judaico começa a se fortalecer, estando intimamente ligado à idéia da língua hebraica e de sua utilização como forma de coesão.[20]

O renascimento da língua hebraica começa então a ocorrer baseado em uma ideologia inspirada no nacionalismo europeu, e na ocasião da formação do Estado de Israel, o idioma não só fornecia aos imigrantes de origens diversas uma forma de comunicação, mas foi oficializado seu uso através das escolas do novo estado que também passaram a ensinar o idioma.[21]

Podemos perceber que a maior parte do hebraico moderno é formado pelo hebraico bíblico, isso porque durante toda a história, é fundamental o papel da leitura do Tanakh durante as cerimônias religiosas que envolviam a vida do povo judeu. De qualquer forma, por uma série de fatores, no renascimento da língua, parte do vocabulário da Bíblia Hebraica teve seu significado alterado. Um dos motivos é que até hoje muitos dos vocábulos bíblicos têm seu significado debatido até hoje, o que abriu um leque de possibilidades dentro do idioma moderno. Além disso, as necessidades do pensamento moderno também exigiram alterações e adaptações de significado nas palavras.[22]

A participação crescente dos judeus na cultura ocidental fez com que algumas palavras do léxico hebraico mudassem seu significado e passassem a ser correspondentes das palavras contidas nas línguas européias, o que anteriormente não ocorria, já que a língua hebraica, devido à distância cultural originalmente não havia desenvolvido palavras para determinados conceitos, assim como também possuía termos para idéias desconhecidas das culturas européias. Todo este desenvolvimento do hebraico chegou ao seu ápice através da linguagem jornalística, da técnica e da ciência, ou seja, todo o processo de secularização da língua contribuiu de forma muito relevante com a ampliação de vocabulários e significados.[23]

Apesar da linguagem bíblica ser a mais estudada (pois estuda-se a Bíblia desde cedo nas escolas israelenses) e também a que predomina na memória coletiva dos falantes do hebraico, a linguagem e forma mishnaicas também possui um amplo espaço dentro do idioma corrente nos dias atuais. Muitas vezes palavras sinônimas têm origens diferentes (uma bíblica e outra mishnaica) e são usadas de igual forma, sem distinção. Outros vocábulos, apesar de originalmente possuírem o significado exatamente igual, no hebraico moderno começam a deixar de ser homônimos para apresentarem uma variação de significado, o que confere á língua uma nova complexidade e beneficia a expressão oral e literária.

Assim, podemos perceber, que todo o processo que resultou no hebraico moderno não foi o resultado de uma evolução similar aos processos pelos quais passaram línguas cujos estratos históricos se desenvolveram continuamente. Este processo, durante muitos séculos se deu somente enquanto língua escrita, e mesmo assim de forma diferente, já que não ocorriam eliminações ou substituições lingüísticas, mas todos os estratos históricos (bíblico, talmúdico e medieval) foram colocados lado a lado, sem a eliminação do que era considerado antigo quando apareciam inovações, e é justamente esta sucessão peculiar que caracteriza o hebraico moderno.[24]

Por Irrael B. C. Melo Jr.

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Notas

[1] HADAS-LEBEL, Meirele. O hebraico: 3000 anos de história. Paris: Éditions Albin Michel, 1992 (tradução de Eliana Branco Matanga para o Centro de Estudos Judaicos da FFLCH – USP, em abril de 1998), p. 13.
[2] FRANCISCO, Edson de Faria. Características da língua hebraica: Hebraico Arcaico, Hebraico Pré e Pós-Exílico, Hebraico de Qumran e Hebraico Massorético. São Paulo: Biblioteca do Centro de Estudos Judaicos, ?, p. 2.
[3] Ibid., p. 2.
[4] BEREZIN, Rifka. O Hebraico Bíblico no Hebraico moderno – Contribuição para o estudo das transformações semânticas no hebraico bíblico. São Paulo: Departamento de Lingüística e línguas Orientais da FFLCH – USP, 1985. Tese (doutorado), p. 26.
[5] FRANCISCO, p. 6.
[6] HADAS-LEBEL, p.19
[7] Ibid., p. 20-21.
[8] RIFKA, p. 12.
[9] HADAS-LEBEL, p.34.
[10] RIFKA, p.74.
[11] Ibid., pp. 57-60.
[12] Ibid., pp.92-93.
[13] Ibid, pp. 81-86.
[14] HADAS-LEBEL, p.36.
[15] Ibid., p. 17.
[16] RABIN, Chaim. Pequena História da Língua Hebraica. São Paulo: Summus Editorial, s.d., pp. 63-80.
[17] FRANCISCO, p. 13.
[18] Ibid., p. 14.
[19] RABIN, pp. 81-86.
[20] Ibid., p. 87-93
[21] Ibid., 101.
[22] BEREZIN, pp. 2-5.
[23] Ibid., pp. 7-9, 103.
[24] Ibid., pp. 100-102


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