Respostas na Bíblia Hebraica I  

Postado por Irrael B. C. Melo Jr em , ,

Caros amigos leitores deste blog, gostaria de agradecer as visitas e comentários que tenho recebido nestas primeiras semanas do Blog Estudos na Bíblia Hebraica.

Tenho percebido que algumas pessoas têm enviado perguntas e solicitações através dos comentários, por isso decidi começar a responder em minhas postagens com artigos bem objetivos às principais questões levantadas.

Por isso peço que continuem enviando perguntas através dos comentários e eu farei o possível para atendê-los de acordo com meu tempo e dentro do meu campo de conhecimentos.

Sendo assim, selecionei a primeira questão para inaugurar esta seção de perguntas e respostas:

Prezado Senhor Irrael,
Primeiramente quero parabenizá-lo por este blog, pois o mesmo é uma fonte riquíssima para estudiosos agregarem conhecimentos Bíblicos.
Irrael, eu sei que você dever ser uma pessoa muito ocupada, mas caso você possa me ajudar, eu desejo fazer a você a seguinte pergunta: No Hebraico Bíblico o trecho do versículo de Ageu 2.7 que diz “virá o Desejado das nações” refere-se a uma profecia messiânica a respeito da vinda de Cristo ou não?
Minha dúvida a este respeito veio após eu ler esse versículo em diferentes versões, pois algumas versões fazem entender "O Desejado" como sendo o Messias, já outras como se fossem riquezas das nações. Assim, como não encontrei nenhuma literatura confiável que possa esclarecer esta minha duvida, recorro ao seu notável saber da língua hebraica para que, caso possa, me informar a respeito.
Desde já, meu muito Obrigado.
Gleison.


Gleison, primeiramente muito obrigado pelo incentivo à este blog e ao meu trabalho.

Neste caso de Ageu 2:7, a palavra traduzida em algumas versões como ”riquezas” e outras como “Desejado”, em hebraico é חֶמְדַּת, transliterada, hemdat, que seria o adjetivo singular de algo precioso ou desejável.

Certo, até aqui as duas opções seriam possíveis, então vamos analisar outra palavra ligada à esta na frase, וּבָאוּ, transliterada, uvau, que significa “e virão”, portanto, a conjunção + verbo no plural.

Desta forma temos aparentemente um certo problema, pois o verbo está no plural, mas o sujeito no singular, veja:

וּבָאוּ חֶמְדַּת, (uvau hemdat) que traduzindo literalmente, ficaria “e virão a preciosidade” ou “e virão o desejo”.

Os estudiosos argumentam, para responder à esta questão, que hemdat é singular, mas assume um significado de coletivo por estar com seu verbo no plural, assim pode ser traduzido como “e virão os desejos” ou “e virão as preciosidades”. Assim, a maioria das traduções mais aceitas traduzem preciosidades ou riquezas devido ao contexto do verso seguinte (2:8), onde aparecem referências à ouro e prata.

Mas e as versões que traduzem este trecho como “e virá o Desejado”, sugerindo uma profecia messiânica?

Neste caso é necessário primeiro entender que toda tradução, ao escolher palavras para traduzir um texto do original está, invariavelmente, fazendo uma exegese, e esta exegese estará, de forma proposital ou não, imbuída da ideologia e visão de mundo do tradutor. São Jerônimo, que traduziu o chamado Antigo Testamento (Bíblia Hebraica ou Tanakh) direto do hebraico para o latim, na chamada Vulgata (que também inclui o Novo Testamento cristão), ao se deparar com estas e outras questões levantadas pelo livro de Ageu, optou por traduzir o trecho da seguinte maneira: “et veniet Desideratus”, ou seja, “e virá o Desejado”, fazendo uma clara alusão ao Messias.

Considerando que a Vulgata foi a única tradução usada pela igreja católica na liturgia durante muitos séculos, e mesmo depois foi muito usada como ajuda ou fonte nas traduções da Bíblia para várias línguas, esta interpretação da profecia se propagou e foi defendida por personagens importantes, como por exemplo Martinho Lutero, e encontra adeptos até hoje. Porém é importante frisar que nos meios acadêmicos esta visão encontra-se quase abandonada.

Por Irrael B. C. Melo Jr.

---
Bibliografia

BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, 2003.
SMITH, R. L. Word Biblical Commentary : Vol. 32: Micah-Malachi (electronic ed.). Logos Library System; Word Biblical Commentary. Dallas: Word, Incorporated,1998.


Este texto está protegido por direitos autorais.

Estudos na Bíblia Hebraica por
Irrael Baboni Cordeiro de Melo Junior está licenciado sob uma atribuição Creative Commons - Uso Não-Comercial-Compartilhamento pela mesma Licença 2.5 Brasil License.

O relato de Iosseph (José) de acordo com duas grandes exegeses  

Postado por Irrael B. C. Melo Jr em ,

O presente artigo tem como objetivo realizar uma breve análise do relato bíblico de Iosseph (José) - Gênesis capítulo 37 e 39. No relato de Iosseph, pretendo realizar primeiramente uma descrição geral do relato e a seguir selecionar alguns pontos específicos para comparação exegética. Esta análise se dará a partir do grande exegeta tradicional da Idade Média, Rashi e de um tradutor da Bíblia do século XX, André Chouraqui. A seguir apresento uma breve biografia desses dois personagens importantes quando se trata de exegese bíblica.

Rashi

O Rabi Shlomo Bem Yitzhaki, mais conhecido como Rashi, foi o mais famoso comentarista da Torá. Ele escreveu comentários, explicando e esclarecendo quase todos os versos dos 24 Livros da Torá. A maioria do Talmud também foi elucidada por Rashi. Foram seus comentários que permitiram que esta enciclopédia de lei e sabedoria judaica se tornasse compreensível. Nascido na França, Rashi viveu durante os anos 1040-1105. Rashi usava um tipo de letra própria, uma forma semicursiva da escrita hebraica, também denominada Mashket sendo conhecida como “caracteres rabínicos”. Até hoje os comentários são impressos em letra de Rashi ao lado dos caracteres quadráticos.

Chouraqui

André Chouraqui é um judeu nascido na Argélia em 1917, mas domiciliado na França e em Israel. Dedicou-se à tradução da Bíblia (Antigo e Novo Testamento) para o francês a partir do texto original (hebraico para o Antigo Testamento, e grego para o Novo Testamento), procurando ser fiel, o mais possível, ao sentido nativo das palavras. Disto resulta um texto vernáculo rude, mas muito vivo, justamente por ser muito próximo dos originais.

O relato de Iosseph

Resumo: Bereshit (Gênesis) capítulo 37

O filho favorito de Yaacov (Jacó) era Iosseph, seu ben z’kunin (filho da velhice) e lhe presenteou com uma túnica de muitas cores, talvez como sinal de senhorio, o que despertou o ciúme dos irmãos de Iosseph, ao ponto que chegaram a odiá-lo e não poder mais sequer falar-lhe em um tom amigável.

Iosseph teve dois sonhos com a mesma mensagem evidente e ódio de seus irmãos se intensificou quando conheceram o conteúdo desses sonhos. No primeiro, os feixes de espigas de seus irmãos inclinavam-se diante do seu, que estava no meio deles. No segundo, o sol, a lua e onze estrelas (representando toda a família de Iosseph) se inclinavam diante dele. A dedução era que todos os membros da família de Iosseph se subordinariam a ele. Iaakov aparentou reprová-lo pelo fato disso ter despertado a inimizade de seus irmãos, ainda que ele pessoalmente parecia crer que os sonhos tinham algo de sobrenatural.

Quando os irmãos de Iosseph estavam cuidando dos rebanhos de seu pai em Shechem (Siquém), Iaakov o enviou para observar como iam as coisas. Ao vê-lo aproximar-se, os irmãos consideraram que era sua oportunidade de conspirar a sua morte, jogar seu corpo em um poço e em seguida encobrir seu ato dizendo que havia sido devorado por uma besta selvagem.

Reuben (Rúben) sabia que isso era um crime. Queria salvar a Iosseph, porém compreendeu que os outros irmãos não entenderiam suas palavras. A pesar disso, tentou convencê-los para que não matassem a Iosseph, e por isso o jogaram vivo dentro de um poço próximo. Na verdade ele fez isso propondo-se a regressar secretamente mais tarde para resgata-lo.

Nesse momento perceberam que se aproximava uma caravana de ismaelitas que transportavam especiarias ao Egito, e a Yehudá (Judá) ocorreu a idéia de vender Iosseph como escravo ao invés de causar diretamente sua morte. Os demais irmãos aceitaram este novo plano e ao que parece, venderam-no aos viajantes ismaelitas por vinte peças de prata. Reuben, que provavelmente estava longe quando isto ocorreu, regressou ao lugar e para seu grande pesar, Iosseph não estava mais lá. Os irmãos mancharam a roupa de Iosseph com sangue de cabra (ou bode) e a levaram a Iaakov, que se convenceu que Iosseph havia sido devorado por uma besta selvagem e chorou sua perda por muito tempo.

Resumo: Bereshit capítulo 39

Deus protegia Iosseph e este tinha êxito em tudo o que empreendia. Ao dar-se conta disso, Potifar, um comandante do Egito que havia comprado Iosseph, o designou como mordomo de sua casa. A esposa de potifar tratou de seduzir a Iosseph, porém ele ignorava seus assédios. Finalmente, ela sentiu-se ofendida e vingou-se maliciosamente, acusando-o de assediá-la, conseguindo assim que Iosseph fosse jogado na prisão.

Até mesmo no cárcere, Deus estava com Iosseph, e este encontrou graça aos olhos do carcereiro, que o pôs como encarregado de todos os prisioneiros, e assim tudo o que ocorria na prisão era controlado por Iosseph. Enquanto permaneceu ali, conheceu dois funcionários reais, o copeiro e o padeiro, que haviam ofendido ao faraó e estavam em prisão aguardando sua sentença. Uma noite, cada um dos deles tiveram um sonho, os quais contaram a Iosseph, que realizou a interpretação: o copeiro seria perdoado pelo faraó, mas o padeiro seria executado. Tudo ocorreu tal como Iosseph havia predito, então pediu ao copeiro que intercedesse perante o faraó em seu favor, entretanto este funcionário esqueceu o pedido assim que foi liberado da prisão.

Analisando algumas interpretações

A primeira questão que quero chamar a atenção encontra-se no versículo 14 do capítulo 37, onde Iaakov envia Iosseph ao encontro de seus irmãos. A passagem diz que Iosseph é enviado do vale de Hebron e vai para Shechem. De acordo com Rashi, fato este que também é confirmado por Chouraqui, Hebron não é localizado em um vale, mas em uma altitude razoável - Bamidbar (Números) 13:22. Assim, Rashi descobre a oportunidade de conferir a isto um sentido espiritual. “O vale de Hebron”, na verdade anunciaria o estado de degradação que Iosseph se encontraria após encontrar-se com seus irmãos, e ainda compara o fato de Iaakov ter enviado Iosseph com as palavras de Deus a Avraham (Abraão)- Bereshit 15:13.

No versículo seguinte (15), Iosseph está “errante” no campo quando encontra com um homem, que indica o local para onde seus irmãos partiram. O homem, segundo Rashi (fazendo referência ao livro de Daniel 10:21), é o anjo Gabriel, que interpela Iosseph para colocá-lo na rota de seu destino. Assim, como Chouraqui vai afirmar, o diálogo entre os dois, que aparentemente seria acidental, determina o futuro, já que Iosseph não mais retornaria para casa por não ter encontrado seus irmãos, e assim o relato propõe uma reflexão do querer divino com relação ao livre-arbítrio humano.

Mais adiante, no versículo 24, que afirma que os irmãos jogam Iosseph no poço vazio, sem água, Chouraqui considera isto como sendo um outro sinal providencial, já que se estivesse cheio de água, esse poderia ser o fim de Iosseph. Rashi parece confirmar a ação providencial, ao dizer que o texto afirma que o poço estava vazio e sem água, não por acaso, mas para mostrar que se estivesse apenas sem água, ali poderia haver outra coisa que colocasse a vida de Iosseph em risco, como serpentes e escorpiões.

A última questão que quero tratar sobre este relato, é a questão da venda de Iosseph (versículos 27 e 28). Conforme Chouraqui afirma, diversos exegetas rivalizam em engenhosidade para tentar conciliar as aparentes contradições presentes neste trecho, porque os compradores são, primeiro, Ishmeelim (Ismaelitas) no v.27, depois são Midianim (Midianitas) no v.28 e a seguir são novamente Ishmeelim. Rashi tenta conciliar estes acontecimentos da seguinte maneira, na verdade Iosseph fora vendido por algumas vezes, sendo que os irmãos teriam o tirado do poço e o vendido aos Ishmeelim, que por sua vez os venderam aos Midianim, e estes introduziram-no no Egito. Para Chouraqui, esta tese não seria evidente e a questão seria insolúvel, já que no versículo 1 do capítulo 39 Potifar compra Iosseph dos Ishmeelim e não dos Midianim. A exegese tradicional explica isso referindo-se ao fato de Iosseph ter sido vendido e até mesmo roubado várias vezes, o que seria a representação dos exílios de Israel de uma a outra nação (I Cr 16:20). Inclusive esta aparente incongruência oferece ocasião para que entrem os partidários da crítica das fontes dizendo que as contradições são fruto da combinação de dois relatos, um de fonte javista e outro eloísta, fato este que é completamente ignorado e repelido pela exegese judaica tradicional, que considera a totalidade da bíblia como algo uno e coeso.

---

Bibliografia

CHOURAQUI, André. No Princípio (Gênesis). Rio de Janeiro, Imago, 1995.
SILBERMANN, Rabbi A. M. Silbermann (edited by). Chumash with Rashi’s Commentary, vol. I. Jerusalem, Silbermann Family, 5745.


Este texto está protegido por direitos autorais.

Estudos na Bíblia Hebraica por
Irrael Baboni Cordeiro de Melo Junior está licenciado sob uma atribuição Creative Commons - Uso Não-Comercial-Compartilhamento pela mesma Licença 2.5 Brasil License