O relato de Iosseph (José) de acordo com duas grandes exegeses  

Postado por Irrael B. C. Melo Jr em ,

O presente artigo tem como objetivo realizar uma breve análise do relato bíblico de Iosseph (José) - Gênesis capítulo 37 e 39. No relato de Iosseph, pretendo realizar primeiramente uma descrição geral do relato e a seguir selecionar alguns pontos específicos para comparação exegética. Esta análise se dará a partir do grande exegeta tradicional da Idade Média, Rashi e de um tradutor da Bíblia do século XX, André Chouraqui. A seguir apresento uma breve biografia desses dois personagens importantes quando se trata de exegese bíblica.

Rashi

O Rabi Shlomo Bem Yitzhaki, mais conhecido como Rashi, foi o mais famoso comentarista da Torá. Ele escreveu comentários, explicando e esclarecendo quase todos os versos dos 24 Livros da Torá. A maioria do Talmud também foi elucidada por Rashi. Foram seus comentários que permitiram que esta enciclopédia de lei e sabedoria judaica se tornasse compreensível. Nascido na França, Rashi viveu durante os anos 1040-1105. Rashi usava um tipo de letra própria, uma forma semicursiva da escrita hebraica, também denominada Mashket sendo conhecida como “caracteres rabínicos”. Até hoje os comentários são impressos em letra de Rashi ao lado dos caracteres quadráticos.

Chouraqui

André Chouraqui é um judeu nascido na Argélia em 1917, mas domiciliado na França e em Israel. Dedicou-se à tradução da Bíblia (Antigo e Novo Testamento) para o francês a partir do texto original (hebraico para o Antigo Testamento, e grego para o Novo Testamento), procurando ser fiel, o mais possível, ao sentido nativo das palavras. Disto resulta um texto vernáculo rude, mas muito vivo, justamente por ser muito próximo dos originais.

O relato de Iosseph

Resumo: Bereshit (Gênesis) capítulo 37

O filho favorito de Yaacov (Jacó) era Iosseph, seu ben z’kunin (filho da velhice) e lhe presenteou com uma túnica de muitas cores, talvez como sinal de senhorio, o que despertou o ciúme dos irmãos de Iosseph, ao ponto que chegaram a odiá-lo e não poder mais sequer falar-lhe em um tom amigável.

Iosseph teve dois sonhos com a mesma mensagem evidente e ódio de seus irmãos se intensificou quando conheceram o conteúdo desses sonhos. No primeiro, os feixes de espigas de seus irmãos inclinavam-se diante do seu, que estava no meio deles. No segundo, o sol, a lua e onze estrelas (representando toda a família de Iosseph) se inclinavam diante dele. A dedução era que todos os membros da família de Iosseph se subordinariam a ele. Iaakov aparentou reprová-lo pelo fato disso ter despertado a inimizade de seus irmãos, ainda que ele pessoalmente parecia crer que os sonhos tinham algo de sobrenatural.

Quando os irmãos de Iosseph estavam cuidando dos rebanhos de seu pai em Shechem (Siquém), Iaakov o enviou para observar como iam as coisas. Ao vê-lo aproximar-se, os irmãos consideraram que era sua oportunidade de conspirar a sua morte, jogar seu corpo em um poço e em seguida encobrir seu ato dizendo que havia sido devorado por uma besta selvagem.

Reuben (Rúben) sabia que isso era um crime. Queria salvar a Iosseph, porém compreendeu que os outros irmãos não entenderiam suas palavras. A pesar disso, tentou convencê-los para que não matassem a Iosseph, e por isso o jogaram vivo dentro de um poço próximo. Na verdade ele fez isso propondo-se a regressar secretamente mais tarde para resgata-lo.

Nesse momento perceberam que se aproximava uma caravana de ismaelitas que transportavam especiarias ao Egito, e a Yehudá (Judá) ocorreu a idéia de vender Iosseph como escravo ao invés de causar diretamente sua morte. Os demais irmãos aceitaram este novo plano e ao que parece, venderam-no aos viajantes ismaelitas por vinte peças de prata. Reuben, que provavelmente estava longe quando isto ocorreu, regressou ao lugar e para seu grande pesar, Iosseph não estava mais lá. Os irmãos mancharam a roupa de Iosseph com sangue de cabra (ou bode) e a levaram a Iaakov, que se convenceu que Iosseph havia sido devorado por uma besta selvagem e chorou sua perda por muito tempo.

Resumo: Bereshit capítulo 39

Deus protegia Iosseph e este tinha êxito em tudo o que empreendia. Ao dar-se conta disso, Potifar, um comandante do Egito que havia comprado Iosseph, o designou como mordomo de sua casa. A esposa de potifar tratou de seduzir a Iosseph, porém ele ignorava seus assédios. Finalmente, ela sentiu-se ofendida e vingou-se maliciosamente, acusando-o de assediá-la, conseguindo assim que Iosseph fosse jogado na prisão.

Até mesmo no cárcere, Deus estava com Iosseph, e este encontrou graça aos olhos do carcereiro, que o pôs como encarregado de todos os prisioneiros, e assim tudo o que ocorria na prisão era controlado por Iosseph. Enquanto permaneceu ali, conheceu dois funcionários reais, o copeiro e o padeiro, que haviam ofendido ao faraó e estavam em prisão aguardando sua sentença. Uma noite, cada um dos deles tiveram um sonho, os quais contaram a Iosseph, que realizou a interpretação: o copeiro seria perdoado pelo faraó, mas o padeiro seria executado. Tudo ocorreu tal como Iosseph havia predito, então pediu ao copeiro que intercedesse perante o faraó em seu favor, entretanto este funcionário esqueceu o pedido assim que foi liberado da prisão.

Analisando algumas interpretações

A primeira questão que quero chamar a atenção encontra-se no versículo 14 do capítulo 37, onde Iaakov envia Iosseph ao encontro de seus irmãos. A passagem diz que Iosseph é enviado do vale de Hebron e vai para Shechem. De acordo com Rashi, fato este que também é confirmado por Chouraqui, Hebron não é localizado em um vale, mas em uma altitude razoável - Bamidbar (Números) 13:22. Assim, Rashi descobre a oportunidade de conferir a isto um sentido espiritual. “O vale de Hebron”, na verdade anunciaria o estado de degradação que Iosseph se encontraria após encontrar-se com seus irmãos, e ainda compara o fato de Iaakov ter enviado Iosseph com as palavras de Deus a Avraham (Abraão)- Bereshit 15:13.

No versículo seguinte (15), Iosseph está “errante” no campo quando encontra com um homem, que indica o local para onde seus irmãos partiram. O homem, segundo Rashi (fazendo referência ao livro de Daniel 10:21), é o anjo Gabriel, que interpela Iosseph para colocá-lo na rota de seu destino. Assim, como Chouraqui vai afirmar, o diálogo entre os dois, que aparentemente seria acidental, determina o futuro, já que Iosseph não mais retornaria para casa por não ter encontrado seus irmãos, e assim o relato propõe uma reflexão do querer divino com relação ao livre-arbítrio humano.

Mais adiante, no versículo 24, que afirma que os irmãos jogam Iosseph no poço vazio, sem água, Chouraqui considera isto como sendo um outro sinal providencial, já que se estivesse cheio de água, esse poderia ser o fim de Iosseph. Rashi parece confirmar a ação providencial, ao dizer que o texto afirma que o poço estava vazio e sem água, não por acaso, mas para mostrar que se estivesse apenas sem água, ali poderia haver outra coisa que colocasse a vida de Iosseph em risco, como serpentes e escorpiões.

A última questão que quero tratar sobre este relato, é a questão da venda de Iosseph (versículos 27 e 28). Conforme Chouraqui afirma, diversos exegetas rivalizam em engenhosidade para tentar conciliar as aparentes contradições presentes neste trecho, porque os compradores são, primeiro, Ishmeelim (Ismaelitas) no v.27, depois são Midianim (Midianitas) no v.28 e a seguir são novamente Ishmeelim. Rashi tenta conciliar estes acontecimentos da seguinte maneira, na verdade Iosseph fora vendido por algumas vezes, sendo que os irmãos teriam o tirado do poço e o vendido aos Ishmeelim, que por sua vez os venderam aos Midianim, e estes introduziram-no no Egito. Para Chouraqui, esta tese não seria evidente e a questão seria insolúvel, já que no versículo 1 do capítulo 39 Potifar compra Iosseph dos Ishmeelim e não dos Midianim. A exegese tradicional explica isso referindo-se ao fato de Iosseph ter sido vendido e até mesmo roubado várias vezes, o que seria a representação dos exílios de Israel de uma a outra nação (I Cr 16:20). Inclusive esta aparente incongruência oferece ocasião para que entrem os partidários da crítica das fontes dizendo que as contradições são fruto da combinação de dois relatos, um de fonte javista e outro eloísta, fato este que é completamente ignorado e repelido pela exegese judaica tradicional, que considera a totalidade da bíblia como algo uno e coeso.

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Bibliografia

CHOURAQUI, André. No Princípio (Gênesis). Rio de Janeiro, Imago, 1995.
SILBERMANN, Rabbi A. M. Silbermann (edited by). Chumash with Rashi’s Commentary, vol. I. Jerusalem, Silbermann Family, 5745.


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Estudos na Bíblia Hebraica por
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1 comentários

Olá, Irrael! Perdoe meu atrevimento em tentar dar uma outra explicação para essa aparente incongruência bíblica, referente aos versículos 27 e 28 de Gênesis 47. Ao ler a Bíblia, enquanto analisava o que o senhor postou no blog, pensei na possibilidade de que José só tenha sido vendido aos Ismaelitas, citados em Gn 37:25,27,28 e Gn 39:1. Seria impossível a possibilidade de que Judá, já tendo decidido vender José aos ismaelitas (v2), tenha esperado, com seus outros irmãos, que passasse uma caravana de midianitas, e assim pudessem vender José por 20 moedas de prata aos ismaelitas? Infelizmente, não tenho conhecimento do original hebraico, mas a tradução de Almeida Revista e Corrigida (Fiel ao Texto Original) diz em Gn 37:28: "Passando, pois, os mercadores midianitas, tiraram e alçaram José da cova, e venderam José por vinte moedas de prata, aos ismaelitas, os quais levaram José ao Egito". Essa seria uma possível explicação? Ou mesmo dizendo-se fiel ao texto original, esta tradução altera algumas palavras para dar um sentido congruente à questão?

23 de dezembro de 2008 às 16:26

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